Arquivo revela Natalsoldados brasileiros sob granadas e ao somNoel Rosa na 2ª Guerra:

Legenda do vídeo, Ravióli com peru, música e bombas: o Natal dos pracinhas1944

"Sem dormir? Mas há quantas horas que você não dorme?"

"48 horas."

"Está caindo muita coisa lá na frente?"

"Tá caindo muita granada, muita bomba, metralhadora..."

Esse diálogo, entre um correspondenteguerra e um pracinha voltando da linhacombate na Segunda Guerra tem uma grande diferençarelação aos registros feitos pelo pequeno grupojornalistas brasileiros enviados à Itália1944 para acompanhar a Força Expedicionária Brasileira (FEB): ele foi gravadoáudio.

Ele faz parteum precioso material colhido no front pelo correspondente do Serviço Brasileiro da BBC, o anglo-brasileiro Francis Hallawell, e que está sendo resgatado pela BBC Brasil para comemorar seus 80 anos.

Francis Hallawell com gravador portátil,1944
Legenda da foto, O anglo-brasileiro Francis Hallawell, o 'Chico da BBC', usava aparelho 'que pesava uns 15 quilos' para gravar -disco - os sons dos soldados e alojamentos da FEB

Munidoum complexo equipamentogravação e com auxíliouma unidade móvel - uma ambulância convertidaestúdio - Hallawell foi o único jornalista brasileiro a captar as vozes dos soldados, dos oficiais e do pessoalapoio (como enfermeiras) do contingentemais25 mil pessoas enviado para lutar ao lado do Exército americano contra forças nazistas e fascistas.

Suas reportagens eram gravadas e transmitidasLondres pelo Serviço Brasileiro da BBCondas curtas e por retransmissõesrádios brasileiras. Eram ouvidastodos os cantos do Brasil.

Hallawell, o "Chico da BBC", como era conhecido pelos pracinhas - e, depois, pelo público -, levou as vozes dos combatentes brasileiros às suas famílias e a um país ansioso por notícias.

Pelos cercaoito mesesque as tropas estiveramcombate (de setembro1944 ao finalabril1945), suas reportagens tinham audiência cativa no horário nobre dos anosouro do rádio.

"Muitos (ouvintes) já morreram, mas os mais idosos, todos se lembram dele, com muito carinho", conta à BBC Brasil Rose Esquenazi, pesquisadora sobre TV e rádio no Brasil, professora da PUC-RJ e autoraO Rádio na Segunda Guerra: no ar, Francis Hallawell, o Chico da BBC.

"As pessoas queriam que a guerra acabasse, e o Chico trazia as informações lá do front, onde estavam os filhos, os maridos e os noivos."

Soldados no front
Legenda da foto, Efetivopouco mais25 mil pessoas foi enviado à Itália; 443 morreram e 2.722 ficaram feridas | Foto da pesquisaVinicius MarianoCarvalho, King's College, cedida pelo Arquivo Histórico do Exército

"E todo mundo ouvia rádio. Quem não tinha o aparelho, ouvia num bar ou na casa da vizinha."

Jornalismo 'positivo'

Pelo menos 12 reportagensHallawell foram encontradas pela pesquisa. Entre elas, uma sobre uma visita a feridosum hospital. Outra acompanha uma missa na catedralPisaque os militares cantam o Hino Nacional. E uma terceira retrata um programacalourosum alojamento da FEBque soldados satirizam Hitler e Mussolini com versõescanções conhecidas da época.

Elas estavam registradasuma coleção36 discos 78 rpm produzidos pela BBC e que pertence à Embaixada BrasileiraLondres. Esta cedeu a coleção ao pesquisador e professor Vinicius MarianoCarvalho, do Brazil Institute do King's College London, que, porvez, as repassouformato digital para a BBC Brasil.

MarianoCarvalho pesquisa os sambas e marchinhas compostos por pracinhasplena guerra - e cujas únicas gravações in loco são as feitas por Hallawell. O material revela um lado da guerra pouco explorado, da vida no front no intervalo entre batalhas.

A reedição deste material, gravado seis anos após a criação do Serviço Latino-Americano -espanhol e português - da BBC, é um dos elementos que marcam os 80 anos da BBC Brasil, que serão completados14março2018.

As reportagensáudio focam no elemento humano, no dia a dia dos acampamentos e alojamentos, nos momentoslazer e diversão do soldados - traz, enfim, o lado humano da cobertura da guerra.

Solodados brasileiros saudados pela população italiana
Legenda da foto, Soldados lutaram oito meses na Itália;junho1945, começaram a retornar ao Brasil | Foto da pesquisaVinicius MarianoCarvalho, King's College, cedida pelo Arquivo Histórico do Exército

Segundo dados do Exército, o efetivo da Força Expedicionária Brasileira foi25.334 pessoas. Dessas, 443 morreram, 2.722 foram feridas e 23 desapareceram. Mas a tragédia da guerra surgia como panofundo nas reportagensHallawell.

"O Chico não fazia noticiário crítico, não falava dos horrores da guerra, não falavaderrotas", diz Esquenazi. "Fazia matériascomportamento, era um jornalismo 'positivo'... (através dessas reportagens) você não tinha noção do perigo, da tragédia da guerra."

Uma razão para isso, sugere a pesquisadora, está na forte censura do material dos correspondentes. "Era difícil fazer um noticiário mais realista. Havia três níveiscensura, a dos militares brasileiros, a dos militares americanos e a do DepartamentoImprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo."

Correspondente por acaso

A trajetóriaHallawell não era típicaum correspondente. NascidoPorto Alegre, filhopais ingleses e parcialmente educadoum internato na Inglaterra, ele era engenheiro e foi parar no Serviço Brasileiro da BBC basicamente por falar português e querer colaborar com o esforçoguerra.

Por outro lado, o "Chico da BBC" era um bom comunicador, tinha jeito no microfone e empatia com os entrevistados.

Esquenazi diz que, apesar do sotaque inglês,voz, quando surgia no rádio, "tinha certa intimidade com o ouvido do brasileiro".

Soldados na cozinhaalojamento
Legenda da foto, 'MenuNatal' teve ravióli com peru, castanhas e rabanada, tudo 'regado com um bom vinho italiano' | Foto da pesquisaVinicius MarianoCarvalho, King's College, cedida pelo Arquivo Histórico do Exército

De fato, nas entrevistas feitas no Natal1944, o único celebrado pelos pracinhas na Segunda Guerra, Chico passa a impressãoser amigo das pessoas ao microfone. Para Esquenazi, "o Chico trazia humanidade".

Sua linguagem é simples, direta e calorosa, como quando fala"fazer um gostoso vatapá" ou pede ao sargento da cozinha que revele "em segredo" o menu dos expedicionários, ou quando anuncia a músicaNoel (que ele pronuncia "No-hell"') Rosa "sem a qual nenhum Natal brasileiro seria completo".

As entrevistas eram gravadasum discovidro, atravésum aparelho portátil projetado pela BBC especialmente para seus correspondentesguerra, que, segundo relato do próprio Hallawell à BBC, "era uma caixa pesando uns 15 quilos, muito parecida com aquelas vitrolas portáteis que nos anos1920 e 1930 a gente levava para os nossos piqueniques".

Os discos eram levados "de jipe a Florença", e,lá, enviados a Roma pelo malote do Exército Americano,onde eram "irradiados" para Londres. Nos estúdios da BBC, as reportagens eram gravadasacetato e transmitidas ao longo da programação do Serviço Brasileiro.

Soldados na neve

Crédito, 1SgtNahon-AHEx

Legenda da foto, Muitos dos soldados, vindostodas as partes do Brasil, viram neve pela primeira e última vez na Itália | Foto da pesquisaVinicius MarianoCarvalho, King's College, cedida pelo Arquivo Histórico do Exército

Ele era auxiliado por Douglas Farley, um engenheirosom da BBC, que operava o aparelho e a unidade móvelgravação.

Alémgravar reportagens, Hallawell enviava crônicas - pelo telex do Exército Americano - que eram lidas por locutoresLondres. Muitas vezes, ele enviava crônicas escritas pelos correspondentes dos jornais brasileiros na Itália, entre eles Rubem Braga e Joel Silveira.

Após a guerra, Hallawell voltou ao Brasil, onde foi gerenteuma fabricante inglesalocomotivas. Ele morreu2004,Petrópolis.

Nos poucos mesesque praticou jornalismo, conseguiu registrar uma visão única dos pracinhasum momento marcante da história do país.

"É um materialenorme valor não apenas para a história do Jornalismo, como também para a história do Brasil. Ao longo2018, outros tesouros deste arquivo único serão divulgados para o público", diz Silvia Salek, diretoraredação da BBC Brasil.