Como Brasil transformou animal sagradoo que e arbetymarajá indianoo que e arbetyrevolução genética e mercado bilionário:o que e arbety

Touro Krishna, embalsamado na fazenda Cachoeira, no Paraná

Crédito, Diego Padgurschi/BBC

Legenda da foto, Krishna viveu só um ano no Brasil, mas deixou herdeiro que espalhou seu DNA pelo rebanho nacional

O feito chamou a atenção até do governo indiano – que, agora, busca o Brasil para reintroduzir a raça emo que e arbetyterra natal, onde ela quase desapareceu após cruzamentos malsucedidos e jamais teve a produtividade alcançadao que e arbetyfazendas brasileiras.

Celso Cid, o marajáo que e arbetyBhavnagar e um touro do brasileiro
Legenda da foto, Celso Cid recebeu o marajáo que e arbetyBhavnagar emo que e arbetyfazendao que e arbetySertanópolis, no início dos anos 1960

Netoo que e arbetyCid e um dos herdeiroso que e arbetysua fazenda, o advogado Guilherme Sachetim diz que a comprao que e arbetyKrishna "foi um divisoro que e arbetyáguas na pecuária brasileira".

Ele afirma que o touro "refrescou o sangue" do gado leiteiro nacionalo que e arbetyum momentoo que e arbetyque a consanguinidade limitava a produtividade dos rebanhos.

A chegadao que e arbetyKrishna coincidiu com o avanço das técnicaso que e arbetymelhoramento genético, que disseminaram pelo Brasil o DNAo que e arbetytouros e vacaso que e arbetyalto desempenho.

Hoje, segundo Sachetim, a linhagemo que e arbetyKrishna está presenteo que e arbety80% do rebanho Gir brasileiro e se espalhou por quase todos os países das Américas. "Milhõeso que e arbetypessoas foram beneficiadas com essa importação", afirma.

No tempo dos marajás

A saga do touro liga o Brasil à era dos marajás na Índia, quando poderosos locais governavam microestados e desenvolveram linhagens que deram origem às principais raçaso que e arbetygado indiano, também chamadoo que e arbetyzebu.

Em Bhavnagar, no oeste do país, a família governante notabilizara-se pela criaçãoo que e arbetybois e vacas mais preparados para resistir à maior ameaça local: ataqueso que e arbetyleões. Graças aos chifres voltados para trás e para baixo, os pescoços dos animais ficavam protegidos das mordidas dos predadores.

Vacas Gir na Fazenda do Basa, nos arredoreso que e arbetyJuizo que e arbetyFora (MG)

Crédito, João Fellet/BBC

Legenda da foto, Vacas Giro que e arbetyfazenda próxima a Juizo que e arbetyFora (MG) podem produzir 20 litroso que e arbetyleite por dia

A raça, selecionada ao longoo que e arbetydois mil anos, foi batizadao que e arbetyGir – nomeo que e arbetyuma floresta local.

Quando Celso Garcia Cid mandou seu vaqueiro à Índia,o que e arbety1958, a era dos marajás já havia se encerrado. Após a independência do país,o que e arbety1947, autoridades passaram a confiscar os bens dos antigos governantes.

Mas o marajáo que e arbetyBhavnagar, H. H. Shri Krishnakumarsinghji, conseguiu preservar parte da linhagem desenvolvida pela família, e que teve todos os cruzamentos registradoso que e arbetylivroso que e arbetyanotações nos últimos três séculos.

Marajáo que e arbetyBhavnagar
Legenda da foto, Anteso que e arbetymorrer, o marajáo que e arbetyBhavnagar doou todas as vacas para Celso Cid

Uma das joias do rebanho era o touro Krishna.

Em O Tempoo que e arbetySeo Celso, biografia do fazendeiro, mortoo que e arbety1972, o jornalista Domingos Pellegrini narra a negociação para trazer o animal ao Brasil.

Após o patrão ordenar a compra do touro, Ildefonso dos Santos telefonou para o palácio do marajá. Por sorte, o secretário do indiano falava português – possivelmente aprendidoo que e arbetyGoa, naquela altura ainda uma colônia portuguesa na Índia.

O secretário disse que Krishna já havia sido negociado e que o resto do rebanho não estava à venda. Mas o marajá, que acompanhava a conversa, ficou curioso com o interesseo que e arbetyum comprador vindoo que e arbetyterras tão distantes e convidou Ildefonso ao palácio.

Os dois se encontraram, e o vaqueiro convenceu o marajá a lhe vender Krishna e outras vacas – que se uniram às dezenaso que e arbetycabeças que ele já havia adquiridoo que e arbetyoutros criadores.

Maiso que e arbetyum ano depois, Ildefonso embarcava no portoo que e arbetyMadras com toda a boiada rumo ao mar Vermelho. O navio Cora atracou na Arábia Saudita, cruzou o Canalo que e arbetySuez e passou ao Mediterrâneo.

Três tempestades e 44 dias depois da partida, chegou à Guiana Francesa. Anteso que e arbetyalcançar o destino final, o rebanho teveo que e arbetypassar por uma quarentena na Ilha das Cobras, no litoral do Paraná, o momento mais penoso da jornada.

Retratoo que e arbetyCelso Cid dianteo que e arbetytroféus

Crédito, Diego Padgurschi/BBC

Legenda da foto, Cid quebrou domínioo que e arbetypecuaristas do mineiros, reabrindo o Brasil a importaçõeso que e arbetygado indiano

"Na ilha morreram uma vaca, caída nas rochas da beira-mar, e outra que caiu no mar e se afogou; mais cinco bezerros intoxicados com feijão moído dado como alimento, nos diaso que e arbetyque o capim mal dava para os animais adultos. Outra bezerra Nelore morreu enforcada na própria corda; mais seis bezerros por faltao que e arbetyleite; um touro Gir atirado sobre as pedras na maré baixa,o que e arbetybriga com outro", relata Pellegrini na biografiao que e arbetyCid.

Dos 119 animais que deixaram a Índia, 103 chegaram à costa do Paraná, dos quais sete nascidos durante a viagem.

JK e Jango

Enquanto a epopeia se desenrolava, Cid batalhava para que o governo federal autorizasse o desembarque dos bichos. Na época, o Ministério da Agricultura exercia um forte controle sobre a importaçãoo que e arbetygado. O rigor atendia ao lobbyo que e arbetypecuaristas mineiros, que dominavam o setor após importar levaso que e arbetyzebu um século antes.

Ciente da viagem patrocinada por Cid, a Confederação Rural Brasileira enviou uma carta ao ministério defendendo que os 103 animais fossem sacrificados para não expor "os rebanhos do país a gravíssimas e irremediáveis infecções".

Para pedir a liberação da carga, Cid se reuniu com o presidente Juscelino Kubitschek e, depois, com seu sucessor, João Goulart. Oito meses após chegar à Ilha das Cobras, quando a viagem toda completava quase dois anos, a boiada finalmente desembarcou.

Celso Cid exibe seu rebanho a visitantes
Legenda da foto, Inicialmente usado no Brasil para produçãoo que e arbetycarne e leite, gado Gir se especializou na atividade leiteira

Solto na fazenda Cachoeira,o que e arbetySertanópolis (PR), Krishna logo engordou. Até que, um ano depois, um peão chegou esbaforido à sede da propriedade: "O boi caiu, parece que tá morrendo!".

Cid ordenou que, assim que morresse, o animal fosse cobertoo que e arbetygelo. No dia seguinte, levou um taxidermista à fazenda para embalsamá-lo. Queria poder olhar o touro predileto até seus últimos dias.

A carcaçao que e arbetyKrishna foi posta num sarcófagoo que e arbetyvidro na sede da fazenda, onde se encontra até hoje. Entre as patas do bicho, Cid deixou uma placa: "Quer conhecer Gir? Observe-me!"

Após embalsamá-lo, o pecuarista passou a guardar a cabeçao que e arbetycada animal morto. As paredes da fazenda se encheramo que e arbetycrânios com longos chifres e fotografias dos touros e vacas genearcas, como um temploo que e arbetyadoração bovina.

Causa mortis

Jamais a causa da morteo que e arbetyKrishna foi elucidada. Peões relataram que, horas anteso que e arbetydesabar, Krishna brigou com um touro mais jovem.

Netoo que e arbetyCid, Guilherme Sachetim conta que uma autopsia revelou que as veias do coração do animal estavam dilatadas. "Ele pode ter ficado nervoso durante a briga, a pressão subiu, e aí sofreu uma espécieo que e arbetyaneurisma", especula.

Na curta estadia no Brasil, Krishna deixou um único herdeiro – frutoo que e arbetyum cruzamento com a vaca Sakina, também comprada do marajáo que e arbetyBhavnagar.

Coube ao jovem touro Krishna-Sakina, apelidado pela famíliao que e arbetyKrishninha, a tarefao que e arbetyespalhar o DNA do pai Brasil afora.

Peão conduz boiada

Crédito, Diego Padgurschi/BBC

Legenda da foto, Gado Gir é o mais valorizado no mercadoo que e arbetyembriões zebuínos, usado para criação da raça Girolando

Quebra do monopólio

Gerente executivo do Museu do Zebu,o que e arbetyUberaba (MG), o historiador Thiago Riccioppo diz que a afirmação da famíliao que e arbetyCido que e arbetyque 80% dos bois e vacas Gir brasileiros têm sangue do touro Krishna é provavelmente correta.

Ele afirma ainda que os esforços do fazendeiro para romper o monopólio mineiro abriram o caminho para "as mais significativas importaçõeso que e arbetyzebu da Índia".

O Brasil abrigava zebuínos desde o fim do século 19, quando barões do café fluminense trouxeram as primeiras cabeças. Mais fortes que as raças europeias, presentes no país desde o início da colonização portuguesa, os bois indianos eram empregados para arrastar máquinas nas fazendas ou exibidos como animais exóticoso que e arbetyzoológicos particulares.

No início do século 20, pecuaristas do Triângulo Mineiro criaram uma associação para registrar a genealogia dos zebus importados e combater a oposiçãoo que e arbetyfazendeiros paulistas, para quem os bois indianos eram animais selvagens e com carne ruim.

Com a retomada das importações, a partir dos anos 1960, acelerou-se a diferenciação das raças zebuínas, à medida que os criadores selecionavam animais para a produçãoo que e arbetycarne ou leite.

Vacas e touros Gir
Legenda da foto, Gado viajandoo que e arbetybalsa rumo à fazendao que e arbetyCelso Cid no Paraná

O gado Nelore se tornou o carro-chefe da pecuáriao que e arbetycorte. Já o Gir foi se especializando na atividade leiteira, pois era considerado mais dócil que as demais raças indianas, característica essencial para a ordenha.

Na décadao que e arbety1980, a Empresa Brasileirao que e arbetyPesquisa Agropecuária (Embrapa) impulsionou o processo ao se associar a criadoreso que e arbetyGir que produziam leite.

Pesquisadores montaram um grande bancoo que e arbetydados com informações sobre a lactaçãoo que e arbetycada vaca. O desempenho dos touros era medido por meioo que e arbetysuas filhas: quando produziam muito leite, garantiam boas notas ao pai.

O progressoo que e arbetytécnicaso que e arbetyinseminação artificial eo que e arbetyfertilização in vitro permitiu que vacas e touros Gir com excelente genética, como Krishninha, gerassem milhareso que e arbetydescendentes ao longo da vida e se tornassem muito valorizados no mercadoo que e arbetyembriões bovinos.

Celso Cid durante viagem à Índia
Legenda da foto, Cido que e arbetyviagem à Índia, onde vacas são consideradas sagradas pelos hindus e não podem ser abatidas

Os mais destacados desses animais, vendidoso que e arbetyleilões por cifras que podem ultrapassar os R$ 50 mil, têm na vida a única funçãoo que e arbetydoar sêmen e óvulos para a produçãoo que e arbetyembriões – que costumam ser gestados por vacaso que e arbetysegunda linha, como barrigaso que e arbetyaluguel.

Especialistao que e arbetyseleção genéticao que e arbetygado leiteiro, o médico veterinário Luiz Fernando Feres diz que, durante a lactação, uma boa vaca Gir brasileira é capazo que e arbetyproduzir cercao que e arbety20 litroso que e arbetyleite por dia – dez vezes mais que as primeiras a desembarcar no país, há maiso que e arbetyum século.

Graças ao trabalho nos laboratórios nos anos 1980 e 1990, a produtividade do gado Gir deu um grande salto, mas ainda estava aquém da obtida pela raça Holandesa. Vacas dessa linhagem europeia podem produzir o dobroo que e arbetyleite e ser ordenhadas mesmo longe das crias.

Já nas raças indianas os bezerros precisam ficar junto das vacas, caso contrário o leite seca (criadores contornam a limitação amarrando o filhote à pata da mãe durante a ordenha).

Por outro lado, as vacas Gir ganhamo que e arbetylavada das holandesaso que e arbetylongevidade e resistência, pois estão adaptadas ao calor e a doenças comuns nos trópicos.

Rebanho Giro que e arbetyJuizo que e arbetyFora

Crédito, Diego Padgurschi/BBC

Legenda da foto, Embriões formadoso que e arbetylaboratório são normalmente gestados por 'barrigaso que e arbetyaluguel'

O pulo do gato ocorreu quando as duas raças foram misturadas. O cruzamento deu origem ao gado Girolando – hoje responsável por cercao que e arbety80% do leite produzido no Brasil, segundo a Embrapa.

Pesquisador da instituição, Marcos da Silva diz que o melhoramento genético do gado Gir e a criação do Girolando fizeram a produção leiteira no país quadriplicar nos últimos 20 anos.

Interesse indiano

Nos últimos anos, a Embrapa foi procurada por autoridades indianas interessadaso que e arbetyimportar vacas e touros Gir brasileiros. Enquanto evoluía no Brasil, a raça foi minguando no país natal, misturada com outros tiposo que e arbetygado sem que houvesse avanços relevanteso que e arbetyprodutividade.

E na Índia, paíso que e arbetyque parte da população é vegetariana, o leiteo que e arbetyvaca tem papel crucial como fonteo que e arbetyproteína.

Sagrados para o Hinduísmo, bois e vacas não podem ser abatidos para o consumo da carne na Índia. No Estadoo que e arbetyGuajarat, terra natal do Gir, a pena por matar uma vaca pode chegar à prisão perpétua.

Netoo que e arbetyCelso Garcia Cid, o pecuarista Guilherme Sachetim diz que a fazenda que importou o touro Krishna sempre respeitou as tradições indianas.

"Nossas vacas aqui morremo que e arbetyvelhice,o que e arbetyartrose ou por inanição, quando não conseguem mais comer."

Touro Krishninha com Celso Cid
Legenda da foto, Cid com o touro Krishna-Sakina, o Krishninha, um dos maiores reprodutores da história da pecuária nacional

Sachetim conta que, após negociar parte do rebanho com Cid, o marajáo que e arbetyBhavnagar veio ao Brasil para ver como os touros e vacas estavam sendo tratados.

Segundo o pecuarista, o indiano ficou tão impressionado que, anteso que e arbetymorrer,o que e arbety1965, doou todas as vacas Gir para o fazendeiro. A família emoldurou a cartao que e arbetyque o marajá expressava o desejo, mas, por causao que e arbetyrestrições sanitárias, jamais conseguiu trazer os animais.

"O marajá viu que aqui os touros e as vacas recebiam tratamentoo que e arbetyverdadeiros reis, mães e rainhas. Tinham pasto à vontade, sombra e água fresca – o que, cá entre nós, nem sempre acontece lá na Índia."