Ligação mística com a natureza: a religiosidade dos indígenas brasileiros:betano bonus amigo

“O que une,betano bonus amigocerta forma, esses povos originários é a ligação estreita com a natureza, com os elementos da natureza”, diz à BBC News Brasil o historiador e antropólogo Giovani José da Silva, professor na Universidade Federal do Amapá (Unifap).

“Conheci pajés quase centenários, convivi com eles. Comecei minha carreira fazendo um trabalho sobre xamanismo, ou pajelança, como queira chamar. Todos eles tinham essa característica: a profunda ligação com a natureza como a gente conhece, o meio ambiente. Eles [os indígenas] não se veem separados dos outros bichos. Eles se consideram bichos como os outros bichos. Eles não se veem separados das plantas, das águas, das pedras. É isso.”

Professor na Universidade Estadualbetano bonus amigoSanta Cruz, na Bahia, o historiador Carlos José Santos, também chamadobetano bonus amigoCasé Angatu Xucuru Tupinambá (em alusão a suas raízes indígenas), concorda que “a coisa que nos unebetano bonus amigorelação à espiritualidade é a relação com a natureza, a profunda relaçãobetano bonus amigopertencimento à natureza”.

“Esse é o ponto: sentir as energias da natureza, esse pertencer à natureza, terra, mata, ar, rios, mares, pássaros, aos bichos… Esse sentimentobetano bonus amigopertencimento,betano bonus amigonão ser antropocêntrico”, comenta ele, à reportagem.

Ele arrisca dizer que talvez a melhor palavra seria biocentrismo — para definir essa oposição ao antropocentrismo.

“Não somos antropocêntricos. Isso é um sentimento bastante comum [aos povos indígenas]. Não somos ensimesmadosbetano bonus amigonós mesmos. Entendemos a relação como sendo parte da natureza encantada”, explica.

É religião?

Para o poeta Daniel Massa, idealizador do projeto Biblioteca Indígena do Xingu e autor do livro Fio d’Água — que trata da espiritualidade indígena —, o próprio fatobetano bonus amigonão se considerar as crenças dos povos originários como religião já é uma marcabetano bonus amigopreconceito.

“Essa [definição] é uma questão complexa. Mas acredito que pensar nessas manifestações como religiões é um modobetano bonus amigodesconstruir o etnocentrismo europeubetano bonus amigorelação aos indígenas”, afirma ele, à BBC News Brasil.

Ele cita os textos do cronista Pero Magalhãesbetano bonus amigoGândavo (1540-1579) para fundamentar seu argumento. “[Gândavo] exemplifica isso nos seus relatos sobre o Brasil ao afirmar que a língua falada pelos povos do litoral careciabetano bonus amigotrês letras: F, L e R. Nabetano bonus amigoatrapalhada argumentação, a ausência dessas letras era ‘coisa dignabetano bonus amigoespanto’, já que assim esses povos não conheciam a fé, a lei e o rei, vivendo ‘desordenadamente’”, conta Massa.

“Mais que a estreiteza do pensamento, Gândavo reforça o apagamento das religiões indígenas. Esse ideário, inclusive, fundamenta o processobetano bonus amigocatequização que ocorreu nos séculos seguintes e,betano bonus amigoalgum modo, permanece até hojebetano bonus amigoproporções diferentes”, completa.

Silva discorda. “Não chamariabetano bonus amigoreligião. Para mim, religião é outra coisa: catolicismo, protestantismobetano bonus amigosuas várias vertentes. Eu sou budista e não vejo o budismo como religião, muito mais como religiosidade, como formabetano bonus amigolidar com o sagrado”, reflete.

“Alguém me pergunta se eu vejo teatro nas populações indígenas. Não, teatro como conhecemos,betano bonus amigogente que ensaia texto com atores e atrizes, esse teatro, não. Mas eu vejo teatralidades, toda a atmosfera da representação. Assim, não vejo religião. Eu chamobetano bonus amigoreligiosidades”, define Silva.

“Ou manifestações do sagrado, manifestações do espiritual, daquilo que escapa à nossa compreensão mais imediata, que é só a fé, só a crença, a mitologia que a gente chamabetano bonus amigolenda e dá errado, porque as mitologias indígenas, as narrativas míticas desses povos, elas são histórias que para esses povos têm muito valor. São histórias para serem acreditadas, para serem vividas nesse campo do sagrado.”

Antesbetano bonus amigoclassificar como religião ou não as crenças indígenas, o historiador Santos prefere promover uma reflexão: qual o sentido da palavra religião.

“Se estamos entendendo isso como bispos, pastores, papas, como essa hierarquia, como um texto único, um lugar-chave, um templo ou uma igreja, se isso for religião, ou se isso for a forma pela qual se classifica uma religião, tenho dificuldadebetano bonus amigodizer que as espiritualidades indígenas pertencem a uma”, contextualiza.

“Mas se religião forem religaçõesbetano bonus amigoespiritualidade, sem necessariamente ter um guia espiritual…”, pondera.

“Porque um pajé não seria um papa, ele é uma fortaleza espiritual, mas ele não é um bispo ou um pastor. Ele se comunica com as forças da natureza, com os encantados da natureza, por ter um preparo espiritual natural e espontâneo. Ele, portanto, é um portadorbetano bonus amigoespiritualidades profundas, mas ele não tem um texto único, um lugar único.”

“Então, dependendobetano bonus amigocomo se conceitua a religião, essa resposta pode ser sim, pode ser não. As espiritualidades indígenas têm relação com a religião desde que não tenham hierarquia, texto único e lugar único”, sintetiza. “Se isso não for [necessário para ser classificado como uma] religião, então, sim.”

Para Santos, o melhor é chamarbetano bonus amigo“universobetano bonus amigoencantaria”,betano bonus amigovezbetano bonus amigoreligião, crença ou mitologia. O historiador e antropólogo Silva acrescenta que, “em todas as culturas que eu estudei e outras mais que eu conheço, há uma forte ligação com os mundos espirituais; não um mundo espiritual apenas, mas os mundos espirituais”.

Diversidades

Mas se há muitobetano bonus amigocomum, também é importante ressaltar que os povos indígenas não são um só — muito pelo contrário, há uma grande variedade. “É sempre bom salientar que são maisbetano bonus amigo300 povos originários no Brasil […] com suas diversidades dependendo da localidade, da temporalidadebetano bonus amigocontato com não-indígenas e com outros povos indígenas”, afirma Santos.

O professor lembra que inclusive os contatos com outras culturas ocorridos no Brasil influenciaram essas espiritualidades. Há indígenas que permanecem isolados, enquanto outros tiveram o primeiro contato com outras sociedades há pouco tempo.

“Também existem os indígenasbetano bonus amigocontato [com outros] há maisbetano bonus amigo100 anos, indígenasbetano bonus amigoaldeias e indígenasbetano bonus amigocidades. Isso é fundamental para perceber a diversidade histórica, geográfica, espacial e cultural”, salienta.

Ele cita o exemplo que vem justamentebetano bonus amigoonde ele se situa, no território tupinambá que fica na região da Ilhéus, na Bahia.

“Aqui tem a peculiaridade que foi o nosso contatobetano bonus amigoespiritualidades com as culturas afrobrasileiras que estão presentesbetano bonus amigonossos rituais e vice-versa, assim como nossas tradições estão nos rituais afrobrasileiros aqui da Bahia”, exemplifica.

“São áreasbetano bonus amigocontato espirituais e contatos profundosbetano bonus amigoespiritualidades, presentes nas nações indígenas nordestinas. Aqui temos quilombos com presença indígena e aldeias [indígenas] com presença negra afrobrasileira, inclusive nas suas culturas”, diz.

Essas variações impactam na forma como os rituais são feitos. Em alguns casos, há música e dança. Em outros, pinturas corporais. Enfim, cada cultura acabou construindobetano bonus amigomaneira própriabetano bonus amigoexercer a espiritualidade.

“Cada cultura tembetano bonus amigodinâmica própria”, comenta Santos. “Quando há contato, há trocasbetano bonus amigoespiritualidades,betano bonus amigoformasbetano bonus amigose manifestar,betano bonus amigose pintar,betano bonus amigocolocar o penacho,betano bonus amigousar o colar,betano bonus amigocolocar os brincos.”

Para o historiador, toda cultura e toda espiritualidades passam por transformações, ainda que “se mantenham arraigadas a seus primórdios”.

“Não é correto agrupar. Cada povo tem seus troncos e cada tronco tem seus grupos familiares”, explica. “Há pontosbetano bonus amigocomum, mas existem diferenciações. Agrupar é um ato autoritário, atobetano bonus amigointerferência externa. Classificar é exercer um poder.”

Adaptações cristãs

No processobetano bonus amigocatequização dos indígenas, iniciado no Brasil pelos padres jesuítas, mas depois também realizado por missionáriosbetano bonus amigoigrejas protestantes, um artifício bastante comum foi buscar relacionar entidades reverenciadas pelos povos originários com figuras próprias da religiosidade europeia. Foi assim que Tupã, por exemplo, virou Deus — aquele todo-poderoso e único da matriz judaico-cristã.

Para os indígenas, contudo, Tupã nunca foi encarado como Deus supremo. Em seu livro, Werá salienta que a etimologiabetano bonus amigoTupã “não ébetano bonus amigofácil apreensão”, mas o mais provável é que seja a junçãobetano bonus amigo“coisa maravilhosa” com um “pontobetano bonus amigointerrogação”.

“Uma tradução aproximada seria ‘um estadobetano bonus amigomaravilhamento e admiração interrogativa diante do mistério criador’”, afirma o educador. A variação “tupá”, contudo, carrega o sufixo “pá”, sinônimobetano bonus amigo“estrondo”. “Daí também a ideiabetano bonus amigo[Tupã] ser traduzido como ‘trovão’”, diz Werá.

“Na mitologia tupi, Tupã é um desdobramentobetano bonus amigo‘Poromonham’, o Absoluto Incomensurável,betano bonus amigoonde vibra ‘Nhamandú’, o Inominável. Ele cria mundos cantando. Seus cantos expressam os princípios norteadores para a humanidade, que são dez, segundo os ‘velhosbetano bonus amigosabedoria’”, diz Werá.

Silva, da Unifap, explica que “como [para os indígenas] não havia a ideiabetano bonus amigoDeus, esse Deus onipotente e onipresente, um só Deus, os jesuítas precisaram fazer associações”.

“Tupã seria o trovão, ou aquele que faz, produz o trovão, o barulho, o estrondo. Então associá-lo a Deus pareceu, aos jesuítas, algo que pudesse explicar Deus, porque o barulho do trovão está no céu, vem acompanhado normalmentebetano bonus amigoraios, aquilo podia ser uma manifestaçãobetano bonus amigoDeus”, pontua.

Santos, da UESC, recorda que os cristãos começaram a relacionar Tupã a “Deus Tupã na Oca, como alguns diziam chamar as igrejas católicas: Tupã na Oca, casasbetano bonus amigoDeus”. “[O padre jesuíta José de] Anchieta foi um especialista nisso”, pontua.

O sacerdote costumava encenar peças teatrais com os indígenas, a maneira como encontrou para catequizá-los. Nos enredosbetano bonus amigofundo cristão, os “encantados” para os indígenas apareciam como demônios, como seres vagantes do mal. Esta é a gênese da satanizaçãobetano bonus amigodiversas figurasbetano bonus amigoorigem indígena que foram incorporadas ao folclore nacional.

“Quem disse que a nossa Iara, a Caipora e o Curupira são demônios?”, lamenta Santos.

“Quem disse? São os seres protetores da mata. E quem disse que eles deveriam ter formas humanas? Onde está isso? Não há escrituras indígenas, não deixávamos textos escritos, tudo está na oralidade.”

Foi nesse sentido que, conforme explica o professor Silva, uma associação foi feita entre o Anhangá, entidade protetora das florestas, ao diabo.

“Era uma entidade muito traquina e zombeteira, confundia quem entrava nas matas para machucar os animais, caçar sem necessidadebetano bonus amigocomer, coisas do tipo. Eles [os padres] viram na figura uma possível analogia com o diabo, porque o diabo não existe nas mitologias dos povos tupi”, diz.

“Essas associações sempre foram carregadasbetano bonus amigotodo tipobetano bonus amigoviolências, físicas e simbólicas. Algumas tinham uma intenção pedagógica, mas não por isso menos violentas. Há relatos históricosbetano bonus amigoencenaçõesbetano bonus amigopassagens bíblicas feitasbetano bonus amigolínguas indígenas”, comenta Massa.

“O sincretismo religioso é, portanto, um fenômeno intrinsecamente ligado ao nosso passado colonial. A questão é que ele não surge da relação horizontal entre sistemasbetano bonus amigocrenças religiosas diferentes, mas da tentativabetano bonus amigosobrevivênciabetano bonus amigouma cultura que é violentamente reprimida pela outra.”

O historiador Santos explica que “a forma humana das encantarias não era uma necessidade indígena, mas sim do invasor”.

“A Iara como uma sereia: a lenda da sereia não é nossa. Então transformou-se um encantado protetor das águas dos riosbetano bonus amigouma sereia. São analogias tentando impor a visão do outro sobre as nossas culturas para depois transformá-las e dizer que elas não têm sentido”, prossegue Santos.

Ele explica que, para a espiritualidade indígena, as encantarias não fazem partebetano bonus amigoum universo deísta — portanto, essas analogias são simplificações enviesadasbetano bonus amigoalgo que carrega um significado muito mais amplo para os povos originários.

Silva detalha que cartas escritas pelos padres jesuítas naqueles primeiros temposbetano bonus amigocolonização demonstram uma dificuldade dos mesmosbetano bonus amigocompreender o fatobetano bonus amigoque os indígenas “não tinham deuses, não acreditavambetano bonus amigodeuses,betano bonus amigocoisa nenhuma disso”.

“Havia essa figuras, digamos, do panteão mitológico, mas não chegavam a ser deuses. São entidades míticas que causavam medo, temor, aguçavam a vida das pessoas. Mas não era nada do tipo que se conhecida nas religiões monoteístas”, compara.

Os dez princípiosbetano bonus amigoTupã

Segundo Werá, os cantosbetano bonus amigoTupã expressam os princípios que norteiam a humanidade. O primeiro deles é o “silêncio criador”. “A essênciabetano bonus amigoTupã é ‘Nhamandú’, o imanifestado, tecidobetano bonus amigovazio e silêncio”, explica. “Na mitologia tupi-guarani, o vazio e o silêncio são carne e unha.”

Outro ponto é “o ser como um som”. “De acordo com a visão ancestral, a essência matricial do ser é luz desdobrada do todo, assim como o raio do sol é parte indissociável do sol, que se expressa por meio da mesma luz-fonte, por meiobetano bonus amigoíntima vibração”, escreve ele.

O terceiro princípio é o fatobetano bonus amigoque “a natureza se renovabetano bonus amigotemposbetano bonus amigotempos”, ou seja, são “os ciclos da renovação”. Em seguida vem “a importância do estudo”, “a visão profundabetano bonus amigosi”, tida como “fundamental como apoio para a visão que busca ver além da noite da existência fenomênica”.

Acrescenta-se a ideia da “palavrabetano bonus amigomovimento”, ou seja, o fatobetano bonus amigoque “a essência do ser é interna” e “potência”. O sexto princípio é o da “ética da unidade na diversidade”, que considera cada indivíduo como “um microcosmo do grande mistério, e este, porbetano bonus amigovez, se expressabetano bonus amigomodo múltiplobetano bonus amigoinúmeros seres e coisas”.

“Os tupis dizem: ‘Eu e você somos o som do Criador corporificado na carne, masbetano bonus amigoessência somos. Um. Nosso Pai é o Céu e nossa Mãe é a Terra, que porbetano bonus amigovez são os nossos primeiros ancestraisbetano bonus amigocomum, e honrando-os através da reverência e gratidão, nos mantemos ligados à unidade primordial’”, cita Werá.

O sétimo princípio é o da “roda do sonho e da vigília”, que prega que “a vida interior é a causa da vida exterior”. O oitavo trata da “artebetano bonus amigoservir”, encarada como “uma das maneiras mais eficientesbetano bonus amigocombater o egoísmo e o egocentrismo que a noite da existência nos propicia”.

O penúltimo ponto é a ideiabetano bonus amigoque “a fraternidade é a ação do reconhecimentobetano bonus amigoque somos verdadeiramente uma só grande vida, desdobradabetano bonus amigomuitos indivíduos, assim como raiosbetano bonus amigoum único sol”. Por fim, há o entendimento do “fluxo da vida”: “o mais velho cuida do mais novo”, “o ciclo se faz por um círculo, mas um círculo que não se fecha”.