Carnaval, cinema e morte: como foi a passagemparana betOrson Welles pelo Rioparana betJaneiro há 80 anos:parana bet

O caráter metafórico do diálogo, segundo estudiosos, transcende o enredo no qual se encontra inserido. Para Catherine Benamou, professora da University of California (EUA) e autora do livro It's All True - Orson Welles's Pan-American Odyssey (inéditoparana betportuguês), a menção ao Ceará deve ser encarada sob uma perspectiva autobiográfica. "Vejo essas referências como alegorias", afirma ela à BBC News Brasil. "É uma cena sobre homensparana betdinheiro. Gente interessada apenasparana betlucro, nuncaparana betarte. Foram esses os tubarões que destruíram a carreiraparana betOrson Wellesparana betHollywood."

A Damaparana betShanghai foi, oficialmente, o quarto longa-metragem do cineasta. Desde 1947, o filme tem sido lembrado sobretudo pelo clímax delirante — quando o marinheiro, a femme fatale e o marido traído caminham até um parqueparana betdiversões e resolvem suas diferenças na bala,parana betmeio a um labirintoparana betespelhos mágicos.

No tiroteio, comoparana bettodas as cenas do filme, a Columbia Pictures inseriu uma trilha sonora que desagradou a Welles. Àparana betrevelia, sequências inteiras foram excluídas da montagem final, perdendo-se para sempre. Numa conversa com o amigo e colega Peter Bogdanovich (1939-2022), ele classificaria o resultado como uma "mixórdia apressada".

Não foi a primeira rusga do diretor com os grandes estúdios, e tampouco seria a última. Welles já havia passado por aborrecimentos similares enquanto rodava Soberba (1942), e tornaria a enfrentá-losparana betA Marca da Maldade (1958). Algunsparana betseus filmes, como os shakespearianos Macbeth (1948) e Othello (1951), tiveram produções assoladas pela escassez financeira. Outros, viriam à luz apenas depoisparana betsua morte — é o casoparana betThe Other Side of the Wind, lançadoparana bet2018 pela Netflix.

Bogdanovich, cineastaparana bettrajetória igualmente turbulenta, disse a ele: "Tenho a impressãoparana betque a causa diretaparana bettodos os seus problemas foi aquele fiasco sul-americano, It's All True".

"Não há a menor dúvida", respondeu Welles. "Tudo começou ali, quando eu estava na América do Sul. Esse episódio é o desastre-chaveparana betminha história. Você, naturalmente, vai querer pôr tudoparana betpratos limpos".

Bons vizinhos

Na décadaparana bet1930, Welles já era uma celebridade do teatro norte-americano. Voodoo Macbeth,parana betmontagemparana betShakespeare ambientada no Haiti, apoiava-se num elenco inteiramente negro e suscitaria longos debates raciaisparana bet1936. Dois anos depois, o artista protagonizou um dos maiores incidentes do século 20 — a releitura radiofônicaparana betA Guerra dos Mundos,parana betH.G. Wells, cuja transmissão levaria os apavorados ouvintes da rede CBS a acreditar que uma invasão marciana estavaparana betcurso na Terra.

O Brasil, contudo, só foi descobri-loparana betsetembroparana bet1941. Cidadão Kane, seu longa-metragem inicial, produzido sob total liberdade criativa nos estúdios da RKO Radio Pictures, acabavaparana betchegar às telas cariocas. Viniciusparana betMoraes (1913-1980), então um jovem crítico do jornal A Manhã, esteve entre os primeiros admiradores da obra: "É uma renovação, uma ressurreição, uma revolução completa na moderna cinematografia", escreveu.

Welles, porparana betvez, já vinha se dedicando a uma nova empreitada. Tratava-separana betIt's All True, filme episódico e semidocumental, composto por quatro histórias que esmiuçavam a cultura e a diversidade étnica do continente americano.

A primeira delas, com trilha sonora do pianista Duke Ellington (1899-1974), sintetizaria toda a história do jazz a partir da vidaparana betLouis Armstrong (1901-1971). Em seguida, as plateias vislumbrariam a rotina dos toureiros nos rincões do México. Havia, também, planosparana betreconstituir o massacre dos incas pelos espanhóis no século 16. E,parana betoposição ao preto e branco dos episódios anteriores, o filme culminaria nas esquinas do Rioparana betJaneiro, registrando o Carnaval brasileiroparana bettechnicolor — uma tecnologia ainda cara, naquele momento associada a superproduções épicas, como E o Vento Levou (1939), a desenhos animados, como Brancaparana betNeve e os Sete Anões (1937), ou a musicais, como O Mágicoparana betOz (1939).

Em torno do projeto, aglutinaram-se os executivos da RKO, o governoparana betGetúlio Vargas (1882-1954) e os escritórios do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), agência federal com sede nos EUA e voltada à promoção da solidariedade interamericana — um conceito que se alinhava à figura do presidente Franklin D. Roosevelt (1882-1945) eparana betPolítica da Boa Vizinhança.

"Roosevelt não se aproximou gratuitamente, movido por bons sentimentos", explica Antonio Pedro Tota, professor da PUC-SP e autor do livro O Imperialismo Sedutor - a Americanização do Brasil na Época da Segunda Guerra (Companhia das Letras). "Ele apenas sabia o que estava acontecendo na Europa, com a ascensãoparana betHitler eparana betcrescente influência pelo mundo. O objetivo do presidente norte-americano era angariar maiores simpatias para os EUA e diminuirparana betpechaparana betnação imperialista. Agora, eles se mostrariam como parceiros, oferendo apoio e ajuda econômica aos países vizinhos".

Daliparana betdiante, a exploração da América Latina demandaria cada vez mais recompensas: "O Brasil constatou que aquela era uma oportunidade atraente", diz o historiador. "O país deixavaparana betser um simples fornecedorparana betmatérias-primas e enfrentaria mudanças radicais a caminho da industrialização."

Kane, cidadão brasileiro

A conjuntura tinha suas ironias: Nelson Rockefeller (1908-1979), acionista da RKO e chefe do OCIAA, nunca havia assistido a Cidadão Kane. "Como empresário e membroparana betuma das famílias mais ricas do mundo, ele não dava muita bola para esse tipoparana betfilme", afirma Tota. "Ao ser nomeado por Roosevelt, ele deixou bem claro seu principal objetivo — conquistar os corações e as mentes dos brasileiros."

Era um anseio que ecoava por toda Hollywood. Durante a Segunda Guerra, personagens e cenários latinos tornariam-se elementos recorrentes nas produções dos grandes estúdios. Em 1940, Carmen Miranda (1909-1955) estrelou Serenata Tropical - a primeiraparana betsuas quatorze fitas americanas, nas quais interpretava mulheres invariavelmente exóticas e histriônicas. Em agosto do ano seguinte, Walt Disney (1901-1966) compareceu à estreia brasileiraparana betseu longa-metragem Fantasia — a passagem pelo país o inspiraria na criação do papagaio Zé Carioca, que toma cachaça com o Pato Donaldparana betAlô, Amigos (1942) e reaparece no filme Você Já Foi à Bahia? (1944).

Welles, entretanto, renegava a posiçãoparana betembaixador cultural. Ainda nos EUA, declarou: "Minha vinda ao Brasil nada temparana betcomum com esse slogan que hoje serve para designar o bom entendimento político e econômico entre as Américas. A missão nada temparana betoficial. Estou fazendo uma Política da Boa Vizinhança à minha moda".

Ele tinha apenas 26 anos e abrira mão do próprio salário. A imprensa brasileira, junto ao OCIAA, transformariaparana betviagem num dos principais eventos midiáticos da década.

"A opinião pública construiu uma sérieparana betimagensparana bettornoparana betsua figura", diz Berenice Abreu, professora da Universidade Estadual do Ceará e autora do livro Jangadeiros - uma Corajosa Jornadaparana betBuscaparana betDireitos no Estado Novo (Civilização Brasileira). "Orson Welles era o homem famoso, o gênio excêntrico, o artista elogiado pela crítica, o americano que veioparana betHollywood e descobriu o Brasil. Havia uma mentalidade colonialista, um deslumbre com esse estrangeiro que olhava para nós".

No dia 8parana betfevereiroparana bet1942, às 16h15, o cineasta chegou à capital fluminense. Um pequeno grupo o aguardava na pista do Aeroporto Santos Dumont — entre repórteres e admiradores, lá estava Assis Figueiredo, funcionário do Departamentoparana betImprensa e Propaganda (DIP), órgão criado pelo governo Vargasparana bet1939.

Welles,parana betpaletó e gravata, erguia o chapéu ao descer as escadas da aeronave. Sorrindo, entrou num automóvel que partiuparana betdireção ao hotel Copacabana Palace. Às 17h45 daquele mesmo domingo, concedeu uma entrevista coletiva no saguão do hotel.

"Vim ao Brasil para aprender", disse. "Para sentirparana betrealidade, estudar seu povo, arriscar uma interpretação tão exata quanto possível deste país. Nos EUA, ainda há muita gente pensando que vocês falam espanhol."

Sentia-se um autêntico carioca: "Meus pais viveram nesta cidade", relatou. "Minha mãe viajou daqui para os EUAparana betgravidez avançada. Por questãoparana betsemanas, deixeiparana betnascer no Rio."

Um jornalista criticava seu interesse pelo Carnaval: "A festa nunca representou grande coisa para o Brasil, nem para os brasileiros. São apenas quatro diasparana betfelicidade para o povo, que logo retorna à vida ordinária".

"Nesse caso", respondeu Welles, "os brasileiros são o povo mais privilegiado do mundo. Quatro diasparana betfelicidade no ano é algo que poucos conseguem."

My friend Orson Welles

Viniciusparana betMoraes esteve na coletiva e maravilhou-se com a presença do cineasta. Ao sair do hotel, escreveu: "Vontadeparana betpegá-lo, levá-lo para comer um tutu com linguiça na casa da gente, apresentá-lo à família, ficar amigo dele".

O poeta foi bem-sucedidoparana betseus intentos — logo estaria se encontrando semanalmente com Welles. Em bares e boates, conversavam sobre o Brasil, os EUA, a literatura, as mulheres e o cinema — eram ambos apaixonados pela obraparana betCharlie Chaplin (1889-1977). "É bom saber que você não lê os jornaisparana betHearst", confidenciou a ele o americano, referindo-se a William Randolph Hearst (1863-1951), o magnata da imprensa satirizadoparana betCidadão Kane. "Vamos almoçarparana betbreve".

Welles datilografara os dizeres numa folhaparana betpapel timbrado, atualmente sob a guarda da Fundação Casaparana betRui Barbosa — a entidade detémparana betseu patrimônio todo o acervo pessoalparana betVinicius. Além do bilhete, a reportagem encontrou na documentação um texto sem data, escrito à máquina, com pequenas observaçõesparana betletra cursiva. O título é My Friend Orson Welles, e nele o poeta relata,parana betinglês, seus momentos mais marcantes ao lado do cineasta.

"Dei a eleparana betprimeira festa no Brasil, cinco dias apósparana betchegada", escreveu. "Havia oito ou dez amigos, três ou quatro garotas, um número quase infinitoparana betpratos saborosos e indigestos, uma excelente caipirinha. Ele bebia bem, e comia melhor ainda".

Apesar das farras, Welles já se preparava para as filmagens do Carnaval fluminense —parana betsuas palavras, "a única instituiçãoparana bettodo o mundo completamente despidaparana betespírito comercial".

A caminho do coquetelparana betVinicius, visitara as dependências do Theatro Municipal do Rioparana betJaneiro — junto ao artista plástico Candido Portinari (1903-1962) e ao escritor José Lins do Rego (1901-1957), ele integraria o júri do concursoparana betfantasias a ser promovido por ali. Na véspera, havia apontado suas câmeras para um baile infantilparana betNiterói — cercaparana bet600 crianças se divertiam na Praiaparana betIcaraí com figurinosparana betpirata, índio e Tarzan. Além disso, o cineasta vinha participando ativamente dos protestos contra a extinção da Praça Onze, no centro do Rio — o logradouro, profundamente marcado pela herança cultural africana e tido como o berço do samba, seria demolido para dar espaço à Avenida Getúlio Vargas.

"O Carnaval não era um simples evento", enfatiza Catherine Benamou. "Era um ritual popular, um terrenoparana betdisputa. Welles sentiu a necessidadeparana betmostrar esse processo do início ao fim, desde os primeiros blocos nas ruas dos subúrbios até os palcos dos grandes cassinos frequentados pela elite. Ele queria que o público aqui dos EUA entendesse que o samba tinha raízes na cultura afro-brasileira, e queparana bettorno da festa havia uma indústria cultural muito moderna, com suas próprias especificidades."

O povoparana bettechnicolor

Os preparativos causavam euforia no país: "Façamos o nosso Carnaval sem medo e sem exageroparana betcuriosidade", aconselharia Vinícius aos leitores do jornal A Manhã. "Precisamos resistir à tentaçãoparana betolhar para a câmera,parana betmacaquear diante dela,parana betsatisfazer a nossa vaidadeparana betsermos filmados. Welles precisaparana betcarnavalescos naturais".

Entre os dias 15 e 17parana betfevereiro, suas câmeras registraram,parana bettechnicolor, o cortejo do Rei Momo na Avenida Rio Branco, um showparana betfrevo no Tijuca Tênis Clube, a movimentação nas gafieiras da Lapa, as folias nos bairros proletários da zona norte e os batuques nas favelas da zona sul. Posteriormente, Welles dirigiria cenas adicionais nos estúdios da Cinédia — então, a maior companhia cinematográfica brasileira, famosa por seus melodramas, comédias e cinejornais.

Grande Otelo (1915-1993), representando um malandro arquetípico, encabeçava o elenco. As cantoras Emilinha Borba (1923-2005) e Linda Batista (1919-1988) também participaram das filmagens. Vinicius acompanhou o processoparana betperto: "Nunca esquecerei uma breve cenaparana betmacumba", escreveu. "Welles filmou aquela cena umas quarenta vezes, nunca satisfeito com o resultado".

A escassezparana betfigurantes era uma das principais dificuldades enfrentadas pelo cineasta: "Em Hollywood, a coisa é sopa", queixou-se Richard Wilson (1915-1991), seu assistente. "Mas aqui no Brasil ainda não há organização para encomendasparana betextras."

Aparentemente, a situação se resolveria com a ajuda da imprensa: "Querem tomar parte num filme americano?", sugeriu o anúncio veiculado pela RKOparana betdiversos jornais no dia 28parana betmarço. "É uma grande oportunidade que Orson Welles oferece a moças, senhoras e cavalheirosparana betboa aparência, entre 18 e 45 anosparana betidade".

As 400 vagas foram disputadas por cercaparana bet3 mil pessoas. Os candidatos, porém, eram quase todos brancos. Welles decepcionou-se com a ausênciaparana betnegros no processo seletivo: "Se eu quisesse fazer fantasias, permaneceriaparana betHollywood", disse a um jornalista.

Seus problemas com os grandes estúdios já começavam a se delinear.

"A RKO via aquilo como um simples musical para divertir as massas nos EUA", afirma Benamou. "Eles não imaginavam que Welles utilizaria o technicolor para mostrar o povo, o movimento das ruas. As cores desse filme eram verdadeiramente brasileiras. Não eram coresparana betum set hollywoodiano com Carmen Miranda".

Tota concorda: "Aquele era um Brasil que não aparecia nos desenhos da Disney", diz. "O Pato Donald e o Zé Carioca andam pelas ruasparana betSalvador, uma das cidades mais negras do mundo, mas só encontram personagens brancos".

A abordagemparana betIt's All True, explica Benamou, era diametralmente oposta: "Alô, Amigos e Você Já Foi à Bahia? foram produzidosparana betforma rápida e superficial. Walt Disney nunca se interessou pela autenticidade dos dados que tinha à mão", afirma. "Welles, por outro lado, tinha um olhar etnográfico sobre o Brasil. Ele contratou diversos especialistas para auxiliá-lo, gente como [o repórter] Edmar Morel e [o compositor] Herivelto Martins. As descobertas dessas investigações seriam utilizadas diretamente na narrativa do filme."

Caubóis dos mares

Vinicius mostrava-se entusiasmado com a produção: "Orson Welles começa a conhecer o Brasil, ou pelo menos um lado importante da alma do Brasil, melhor que muito sociólogo, que muito romancista, que muito crítico, que muito poeta brasileiro que anda por aí", sentenciou no dia 30parana betabril.

O interesse do cineasta pela "alma" do país já havia dado a tônicaparana betseu encontro com Getúlio Vargas, dois meses antes. "O presidente ofereceu-me café", disse Welles. "Fiquei envergonhadoparana betconfessar que eu não gostava, então bebi".

Debruçado numa mesa do Palácio Rio Negro,parana betPetrópolis, o americano anunciara ao mandatário seus novos planos — viajar ao Nordeste e reconstituir o chamado "raid" da jangada São Pedro, sobre o qual havia lido um artigo na revista Time.

Segundo a revista nova-iorquina, tratava-separana bet"uma viagem homérica que forjou um milagre político". Quatro pescadores, sem bússola, haviam subido numa pequena embarcação e navegado por 2,7 mil quilômetros, guiando-se pelas luzes dos faróis e das estrelas. A viagem tivera início no dia 14parana betsetembroparana bet1941,parana betFortaleza, e se encerraria dali a dois meses, no Rioparana betJaneiro, então capital federal. O objetivo dos tripulantes parecia inatingível — encontrar-se com Vargas e exigir do presidente melhores condiçõesparana bettrabalho.

Manoel Olimpio Meira, o Jacaré, liderava os jangadeiros. Seus companheiros eram Raimundo Correia Lima, o Tatá; Manuel Pereira da Silva, o Mané Preto; e Jerônimo Andréparana betSouza. Viviam todos no Ceará, lidando diariamente com os perigos da profissão.

"O Jacaré era um poeta, tinha um caderninho onde anotava versos", conta Berenice Abreu. "Ele se destacava pela desenvoltura na fala, pela capacidadeparana betarticulação política. O Jerônimo era um sujeito quieto, habilitado para lidar com os problemas técnicos da jangada. O Tatá era experiente, tinha a calma e a sabedoria do homem mais velho. E o Mané Preto era aquela pessoa que estava sempre ali, topando tudo."

O raid da jangada São Pedro, assim batizadaparana bethomenagem ao santo protetor dos pescadores, tornou-se um grande evento midiático. Populares carregaram a embarcação pelas ruas do Rioparana betJaneiro, e o presidente Vargas recebeu com pompas os quatro viajantes. Jacaré, Jerônimo, Tatá e Mané Preto voltariam a Fortalezaparana betavião, ovacionados como autênticos heróis nacionais.

"Essa viagem deu início a um protagonismo atrelado à ideiaparana betaventura", explica Abreu. "Mas, para os jangadeiros, essa aventura tinha um sentido político. Era uma reafirmaçãoparana betsua existência,parana betseus temores,parana betsuas necessidades mais básicas."

O episódio revelava, simultaneamente, duas visõesparana betpaís — um Brasil considerado arcaico e outro que se pretendia moderno.

"Todo mundo dizia que os jangadeiros eram lindos e maravilhosos, que eles representavam a nação, que eles desbravavam o oceano e lutavam contra feras marinhas", afirma a historiadora. "Ao mesmo tempo, acreditava-se que a categoria estava fadada ao desaparecimento."

Parecia sintomático que Welles, símbolo máximo da modernidade cinematográfica, estivesse fascinado pela aura supostamente rústica desses trabalhadores: "O fato me impressionou", disse o americano. "Depois, verifiquei que esses homens representavam uma classe profissionalparana betgente destemida, que realiza tais proezas não por exibicionismo, mas por deverparana betofício. A coragem dos jangadeiros do Brasil pode ser comparada à ousadia dos caubóis nos EUA."

Morteparana betcena

Às 21h do dia 5parana betmarço, uma quinta-feira, Welles e Jacaré se encontraram pela primeira vez. O cearense, que participavaparana betum treinamento oferecido pela Federação dos Pescadores do Rioparana betJaneiro, aceitara o convite do cineasta para confraternizar no hall do Copacabana Palace. Mas, declarando-se abstêmio, recusou o charuto e os drinques colocados àparana betdisposição naquela noite. Welles pediu-lhe um autógrafo.

"Eu poderia chamá-loparana betMenino Chorão", disse Jacaré — ele não conseguia pronunciar o nome do fã estrangeiro. "Mas, como o moço é sacudido, acho que fica melhor dar-lhe um apelidoparana betpeixe. Que seja Arabaiana."

Quatro dias depois, Welles desembarcouparana betFortaleza. Como um antropólogo, estudou os costumes e a rotina dos pescadores locais. Nas entrevistas, vinha demonstrando crescente interesse por temas nordestinos.

"Diversos fatos da história brasileira poderiam fornecer elementos preciosos para grandes produções cinematográficas", declarou. "Os Sertões de Euclides da Cunha, por exemplo, que ganheiparana betpresente e já li quase todo, daria um grande enredo, se fosse aproveitado como panoparana betfundo para um longa-metragem sobre a vida no interior do país."

Noutras ocasiões, manifestou curiosidade pela trajetória dos cangaceiros, os romancesparana betJoséparana betAlencar (1829-1877) e a obraparana betDorival Caymmi (1914-2008), a quem viria a conhecer pessoalmente, apresentado pelo compositor Ary Barroso (1903-1964). Em compensação, decepcionava-se com os restaurantesparana betluxo aonde era levado — os menus se baseavam na culinária europeia, e o cineasta tinha vontadeparana betcomer moqueca, mocotó, rabada, vatapá e feijoada. Welles voltou ao Rioparana bet12parana betmarço, na companhiaparana betJerônimo, Tatá e Mané Preto. Josefina, esposaparana betJacaré, se opunha à empreitada cinematográfica — num sonho, o marido lhe aparecera morto, com o rosto mutiladoparana betmeio aos destroços da São Pedro.

As filmagens do novo episódio tiveram início às 8h do domingo seguinte, dia 15. Na Barra da Tijuca, Welles dirigia as cenasparana betalto mar, trazendo seu maquinário apoiado sobre uma enorme prancha flutuante. Os jangadeiros interpretavam a si mesmos, com Jacaré auxiliando o cineasta na mise-en-scène dos companheiros. Cada gesto era fixado pelas câmeras e repetido exaustivamente.

Para o dia 19parana betmaio, estavam previstas as gravações dos últimos takes. Às 9h, Welles foi à praiaparana betcarro, tendo sugerido aos pescadores que o seguissem numa lancha. Eles decidiram ir a bordo da própria jangada.

Naquela manhã, o horizonte estava coberto por uma neblina espessa. O mar encontrava-se revolto. Os quatro homens não viam coisa alguma. E,parana betrepente, a embarcação tombou.

"Veio uma onda muito grande e fomos atirados sobre os pedaços da jangada", relataria Jerônimo. "Olhei para o fundo da enseada e vi Jacaré se debatendo contra as ondas".

A correnteza trouxe a São Pedro, inteiramente destruída,parana betvolta à praia. Todos os jangadeiros se salvaram — menos Jacaré. Seu corpo nunca foi encontrado.

Segundo boatos da época, o jangadeiro serviraparana betalimento para tubarões famintos, como aqueles que Welles citariaparana betA Damaparana betShanghai. O Conselho Nacionalparana betPesca negou um votoparana betpesar pela tragédia, alegando que Jacaré não morrera no exercício da profissão. Para muitos cronistas, o cearense havia traído seus princípiosparana betbuscaparana betfama e poder.

"A morte do jangadeiro trouxe à tona aquela velha imagem que sempre se reproduz quando falamosparana bethomens pobres", afirma Abreu. "Eles são reconhecidos e auxiliados enquanto permanecem no seu suposto lugar. Quando ousam ascender, são vistos como sujeitos corrompidos. É uma imagem muito vinculada à lógica da caridade."

Welles, porém, divergia da opinião pública: "Eu sinto profundamente a morteparana betJacaré", declarou o cineasta, horas após o acidente. "Ele era um homem excepcional, um herói, um líder, uma inteligência viva, interessantíssima. Agora, mais do que nunca, há uma razão para continuarmos filmando. Esse filme será um tributo à memóriaparana betJacaré."

No dia 4parana betjunho, os três sobreviventes da São Pedro retornaram à Fortaleza. "Aquilo era muito bom", disse Tatá. "Os americanos só queriam que a gente falasse como se estivéssemos representando num teatro. Às vezes, até faziam a gente comer bolo sem estar com vontade. No hotel, nada faltava, por ordemparana betseu Orson Welles."

"Ele está filmando um monteparana betcrioulos"

Às 17h do dia 12, quem passasseparana betfrente ao Copacabana Palace testemunharia a insatisfação do cineasta com os rumosparana betIt's All True.

Pelas janelas do sexto andar, Welles arremessava louças e cadeiras. Os objetos se espatifavam sobre uma calçada da Avenida Atlântica, causando sustos nos pedestres e raiva na vizinhança. Irritado, o americano equilibrava-se numa disputaparana betforças para salvar o próprio projeto.

As filmagens na periferia da cidade vinham gerando mais controvérsia do que o afogamentoparana betJacaré: "Eu me lembro da noiteparana betque tentamos fotografar as favelasparana betum bairro pobre no Rio", disse Wellesparana bet1945. "Bandidos nos rodearam. Após um cercoparana bettijolos, pedras, garrafas e o diabo a quatro, a gente se retirou com nossas câmeras Technicolor."

O assédio teria vindoparana betagentes do governo Vargas. Nos EUA e no Brasil, intensificavam-se os rumoresparana betque Welles se filiara ao Partido Comunista. Para muitos, a ênfase do cineasta nos aspectos menos patrióticos do Carnaval representava um ato subversivo — o Estado Novo, que transformara a festa popularparana betveículoparana betpropaganda oficial, perseguia abertamente militantesparana betesquerda.

Dentro da RKO, a situação não era menos complicada. Pouco a pouco, o estúdio restringia as verbas e os suprimentos das filmagens.

"Eles pediram para ver as sequências que eu havia rodado na América do Sul", lembrou Welles, já no fim da vida. Ante as imagensparana betprotagonismo negro, os executivos teriam dito: "Ele está filmando um monteparana betcrioulos."

Os padrões da indústria cinematográfica, segundo Benamou, inviabilizavam a continuidade do projeto.

"Nos palcos, os artistas brancos não interagiam com os negros. Havia uma separação, sempre acatada pelos musicaisparana betHollywood", explica a pesquisadora. "Mas Welles desrespeitou esse espaço. It's All True não seria apenas um filme sobre negros isoladosparana betseus guetos. Seria um filme sobre a presença africana na própria constituição das Américas, destacando o intercâmbio entre afro-brasileiros e afro-americanos. Era uma ideia muito ousada, impensável naquele período,."

Com efeito, os ímpetos criativos do cineasta embaraçavam seus patrões: "Sinto-me incapazparana betcontrolar essa tendência do Sr. Wellesparana betusar nossas câmeras para temas que desagradam o governo brasileiro", escreveu Lynn Shores (1893-1949), gerente da RKO,parana betcarta endereçada ao DIP.

Em 16parana betfevereiro, o executivo já havia se queixadoparana bettrês problemas no país: "o calor, a comida estranha e a impossibilidadeparana betse levar o trabalho adiante com a eficácia norte-americana". Noutras correspondências, Shores acusaria Wellesparana betser imprevisível, indisciplinado e pouco confiável.

No dia 20parana betjulho, veio o ultimato — uma nota oficial, veiculadaparana betdiversos jornais,parana betque a RKO declarava não assumir "nenhuma responsabilidade por qualquer ato praticado no Brasil pelo senhor Orson Welles".

Nove dias depois, o cineasta regressou aos EUA. Na véspera, assistira a Limite (1931),parana betMário Peixoto (1908-1992), frequentemente citado como o mais importante longa-metragem já produzido no Brasil. Ninguém soube ao certo o que o norte-americano achou do filme — uma excruciante narrativa experimental sobre três pessoas aguardando a morte num barco à deriva.

"Orson não acreditava no cinema brasileiro", lembraria Vinicius, o organizador daquela sessão na Prefeitura do Rioparana betJaneiro. "Espero que ele tenha saídoparana betlá com uma fé renovada".

Welles nunca mais voltou ao país.

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